Encruzilhada Hamlet
Mais um Hamlet… dessa vez com muito mais crÃtica do que o habitual
Como é de praxe, passei metade da peça puta com os dois personagens de Encruzilhada Hamlet. Isso porque quase todo personagem assim meio próximo da lógica do bufão costuma me incomodar no primeiro contato. Nesse caso especÃfico, a minha birra era porque os espÃritos revividos do prÃncipe Hamlet e de seu coveiro, que se encontravam na tal encruzilhada ainda dentro da cova compartilhada, teimavam em fazer piadas fáceis, entre elas, pelo menos três investindo na graça da palavra cu. “Porra!â€, penso. “Por que é que dizer cu é tão engraçado?â€. Dizer e mostrar, aliás, já que, depois de uns 400 anos enterrados, as roupas dos dois já tinham sido comidas e os atores aproveitavam a nudez para, com alguns movimentos especÃficos, provocar mais risos fáceis da platéia que, correspondendo à expectativa, se esbaldava. “Cuâ€. “Hahahaâ€. “Cuâ€. “Hahahaâ€. “Cu†+ movimento do corpo do ator de costas mostrando o cu. “Hahahaâ€.
Passada a minha revolta com a assustadora risibilidade do cu, os diálogos entre os dois, repletos de gestuais exagerados, caretas e vozes estranhas, tomam um rumo que começa a fazer mais sentido. E se mostra então um enfoque da obra de Shakespeare que ilumina um conflito essencial que me pareceu muito mais caro ao nosso tempo do que o tal assassinato do rei da Dinamarca ou a loucura de seu prÃncipe: o conflito de classes.
Com ele, vêm à cena as diferenças entre os modos de pensar e ver o mundo do Coveiro – homem do povo, sÃmbolo do conhecimento e da experiência adquiridos na vida em si, do olhar mais pé-no-chão inclusive para a própria morte – e de Hamlet – prÃncipe perdido e meio iludido com excesso de palavras e de intelecto que mais atrapalham do que ajudam em situações como a de estar preso à própria cova e estar consciente disso. Entre inúmeras outras situações, claro. Um sÃmbolo claro e concreto de uma tradição morta-viva. E, nesse ponto, ainda que várias falas fiquem difÃceis de compreender, a abordagem é muito mais interessante porque se apropria de fato da obra.
A contradição, no entanto, é o prevalecer do palavrório, ou seja, o fato de o próprio formato da peça e suas escolhas aparentemente tomarem partido do ” nobre”, privilegiando, como ele, a palavra, o intelecto, a sofisticação, a apreensão do mundo somente a partir do discurso. E não me venha tentar convencer que dizer cu bastantes vezes seja aproximar-se do popular, por favor. (Desculpem escrever cu de novo, juro que não estou tentando fazer você rir e que será a última vez nesse texto) Me questiono, para terminar: a opção por este formato – justamente num encontro teatral que tem enorme potencial para se aproximar muito mais do popular por diversas formas – é uma escolha declarada do grupo por um dos lados da luta de classes que ele mesmo expõe, ou uma ” não escolha” , ou seja, uma espécie de fruto do “habitus†do “meio†teatral?
Cotação: P
Breve explicação sobre as cotações do 16º Janeiro de (Super-Mega-Hiper) Grandes Espetáculos:
Para dialogar com o pomposo nome do Festival Janeiro de Grandes Espetáculos, resolvi cotar os “grandes espetáculos” em cartaz no Recife como PP, P, M e G. Mas, atenção! Decidi inverter a cotação! Isso porque eu sou do time dos que gostam mais daquela coisa de teatro pequeno, com público ativo e pertinho dos atores, do que daquelas peçonas que a gente precisa de binóculos pra ver. Sim, isso é bem “gosto pessoal†e não significa que toda peça pequena no mundo seja fantástica, nem que toda peçona produzida na história do teatro seja um lixo. Assim, de acordo com meu critério, a grandeza nessas crÃticas ficará medida ao contrário, no sentido de “os menores serão os maiores”. Tipo PP vale mais que P, que vale mais que M que vale mais que G, deu pra entender?
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Outros Hamlets criticados na Bacante:
Hamlet, do grupo venezuelano Teatro Del Contrajuego
Hamlet, do Capitão Nascimento com o Bradesco Prime
Outros textos sobre o 16º Janeiro de (Super-Mega-Hiper) Grandes Espetáculos na Bacante:
Meu, que não estava no festival, mas estava no contexto da cobertura
Prêmio APACEPE de Teatro e Dança
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