Fio InvisÃvel da Minha Cabeça
Puxando o fio [invisÃvel] desde a minha cabeça até o bonde da história
(Obs.: CrÃtica publicada originalmente no blog do Seminário Internacional de CrÃtica Teatral – evento que aconteceu em Recife e que a Revista Bacante participou como convidada)
Fotos: Val Lima (flickr)
“quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbadosâ€
(Manuel Bandeira)
Conhaque barato e maço de cigarros molhado… Frio cortante, as árvores secas do inverno e ainda chove… garrafa apertada contra o peito, pedra, garrafa quebrada, lama… “Um fio invisÃvel saindo da cabeça dele até a minhaâ€. (e uma “navalha pros meus olhosâ€)
O acúmulo das metáforas e das imagens é duro e concreto, lirismo-material que não se perde em tergiversações “hÃbridasâ€, “ambÃguasâ€, “regurgitadas†e abstratas da alma, do ser, do espÃrito, do amor… Tudo é absolutamente determinado – avalanche de concreto, frio e conhaque – por uma simples definição de gênero: o fio invisÃvel que sai da cabeça DELE … e não DELA; uma única letra (E… e não A) faz de toda e cada sentença uma nova lÃrica pautada por uma luta interna, mas encarniçada, no campo da sexualidade.
Henrique é um ator simples (nu), objetivamente seguro, e mastiga a dureza de cada palavra de Caio Fernando Abreu… Cospe as imagens; cria universos narrativos; compõe, solitário, o frio, a lama e o “ponto†a ser ultrapassado; com poucas palavras Henrique materializa – sobre o vazio do palco – a rua escura por onde caminha; o faz de maneira mais lÃrica e pungente do que se vÃssemos de fato a rua, a chuva e o conhaque barato numa pelÃcula cinematográfica (ou em nossas próprias vidas).
Por outro lado, entre o contexto de ontem e o de hoje há abismos conjunturais… tantas incisões cirúrgicas, evoluções e involução social, recriação de imaginário… (empresas de conhaque barato vão e voltam da bancarrota; os cigarros são e não são bem-vindos), que o “ponto a ir além†de ontem, de Caio, por certo mudou de lugar – terá ido mais adiante? Voltado alguns passos?
Certo é que as linhas de Caio – no conto Além do Ponto – com sua definição de gênero (E… e não A) não aparecem hoje do mesmo modo. Talvez a solidão e o amargor de lidar com a homossexualidade sejam tão ou mais intensos que ontem, contudo há um contexto polÃtico e moral (geralmente bastante hipócrita) em que há um “status†de aceitação da homossexualidade – seja “festivaâ€, como nas grandes demonstrações nas paradas gays pelo mundo todo e nos Ãcones da sociedade assumindo publicamente sua homossexualidade, seja na institucionalização polÃtica e jurÃdica dos direitos cÃvicos do homossexual (cujo maior exemplo é a boa notÃcia da legislação – em efeito dominó pelo mundo ocidental – sobre o casamento gay), etc.
O que não significa, de maneira alguma, a desatualização histórica do tema. Pelo contrário, coloca-o na ordem do dia. A grande força da obra de Caio Fernando Abreu é justamente lidar com o contexto castrador de uma época, portanto, parece exigir que ao nos valermos de seu material literário tenhamos que lidar também com o contexto histórico em suas variantes e continuidades.
Assim, ao escolher levar ao palco, hoje, a referência pontual à situação proposta pelo conto, sem considerar as mudanças no contexto, a peça não consegue chegar ao mesmo lugar que o texto original: não possui o caráter polÃtico escancarado de outrora ao lidar com as questões da homossexualidade marginalizada, da dureza amargurada (por vezes sem saÃda) de um mundo masculino e opressor. De modo que o aspecto polÃtico que a obra exala, de maneira sufocadoramente bela, fica em segundo plano, pois não é confrontado com a transformação imensa que a questão da sexualidade sofreu nestas quase três décadas – a contar da escritura do conto. Então, o que fica verdadeiramente em evidência na peça é o puro lirismo… Concreto e incisivo, porém puro lirismo; destaca-se apenas a beleza avassaladora do texto catalisada com a potência de representação narrativa que o ator possui. Mas o contexto polÃtico (de confrontação, de subversão individual, da dor anárquica) que grita o conto de Caio Fernando Abreu é submerso, afogado pelos tempos…  E o espetáculo parece fechar seus olhos a isso…
“Estou farto do lirismo namorador
[…] De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo
[…] – Não quero mais saber do lirismo que não é libertaçãoâ€
(Manuel Bandeira)
3,2 milhões de pessoas na 14ª Parada do Orgulho Gay em 2010 na cidade de São Paulo
O espetáculo foi assistido no dia 18 de agosto em Recife no Teatro Capiba do SESC Casa Amarela. Fez parte da programação do Seminário Internacional de CrÃtica Teatral do qual a Revista Bacante participou como convidada
Cia. do Ator NU na Bacante:
O que você acha?