Alma Aprisionada

Críticas   |       |    2 de agosto de 2009    |    0 comentários

O corpo nem sempre fala, às vezes simplesmente desenha imagens

“Ai, meu Deus, por que entre tantas opções eu escolhi ver o balé?” – pensava eu, a caminho de Alma Aprisionada. Preconceito? É, talvez. E talvez isso tenha a ver com minha experiência desastrosa na infância, quando a escolinha de balé pra crianças se apresentava no Teatro Municipal da minha cidade, repetindo o Quebra Nozes e o Lago dos Cisnes todo ano. Como agravante, no dia de assistir Alma Aprisionada, tínhamos feito uma longa viagem até São José do Rio Preto com direito a errar o caminho, ir parar em Analândia, e demorar mais do que o necessário.

A partir dessa circunstância, a tendência era que eu dormisse na apresentação e, afinal, era o que eu esperava que fosse acontecer. No entanto, é nesses momentos em que a gente está mais desarmado – até porque está, contraditoriamente, com todas as pedras na mão – que a gente se surpreende.

O que a Cia de Balé de São José do Rio Preto trouxe para o palco não foi uma assinatura própria para uma coreografia consagrada e velha, mas uma criação própria, com base em uma pesquisa de interesse do grupo e que tem algo a comunicar, algo urgente, presente, importante nos nossos dias. O grupo lança um olhar muito próprio para a idéia de loucura e, conseqüentemente, para as batalhas da luta antimanicomial, já apresentada ao público por um folheto na entrada.

Nesse ponto, concordo com a leitura crítica de Lúcio Agra, no jornal Subjetivo, do FIT 2009, que mesmo sem falar diretamente do grupo, menciona “um gestual à maneira do que já se codificou há décadas”. Sim, quando procuram compor personagens que simbolizem a loucura, os bailarinos-atores acabam criando estereótipos que não trazem nada de novo à visão que se tem da loucura e, pior, cristalizam as impressões que já estão consagradas na cabeça das pessoas, sem sensibilizar para outras possibilidades mais complexas, nem conseguir fazer pensar, a fundo, o que é esse limite de “normalidade” imposto por profissionais que denominamos médicos psiquiatras, mas cujos métodos desconhecemos. Perdem, por exemplo, a oportunidade de evidenciar a loucura (e bota loucura nisso!) que são as repetidas notícias de arquivos queimados “acidentalmente” em manicômios que funcionaram como presídio político há algumas décadas. Ou, ainda, expor que, como me contou uma vez o fotógrafo de um hospital psiquiátrico público,  até menos de 10 anos atrás se internava pessoas em manicômios por qualquer interesse privado – coisa de novela mesmo, como marido internando ex-esposa para não dividir os bens; pai internando filha para não se casar com quem ele não quer… enfim, essa podreira toda de dramalhão burguês da vida real.

(Aliás, por falar em novela, você já viu o blog do Bruno Gagliasso, aquele ator de olhos claros que faz Caminho das Índias, mas não dança? Pois é. Em meio a tantas contradições desse tema, até o blog de um ator da Globo pode ser contraditório. Digo isso porque, mesmo um personagem limitado pelo formato novela da Globo é capaz de gerar discussões complexas. E, então, como o ator é bonitinho e a Globo chega a todo canto, a discussão se amplia e tem um efeito inédito no sentido de movimentar as discussões sobre o tema e, por vezes, criar; por outras, desfazer preconceitos. E, o mais importante, a iniciativa de abrir um espaço na Internet, divulgado pelo Fantástico, é assustadoramente capaz de mobilizar pessoas a compartilhar experiências e, de fato, se ajudarem e se apoiarem. Não sem antes dar parabéns ao ator e agradecer a Deus por a Globo existir em suas vidas, claro.)

Se a tentativa de interpretação dos bailarinos-atores de São José do Rio Preto resulta num gestual clichê e em muita gritaria, é preciso destacar, no entanto, que o trabalho corporal desenvolvido por eles me surpreendeu pela sutileza do que só é possível comunicar com o corpo e sem palavras. Nesse ponto, as coreografias realizadas individualmente, diferentes entre si, mas formando um conjunto diverso, comunicam mais do que discursar sobre o respeito à diversidade – ele está ali, dançado, com a liberdade do indivíduo incluído e atuante em um coletivo que não o sufoca, não o padroniza, nem o exclui.

Finalmente, faço questão de citar duas cenas específicas que não seriam tão potentes não fosse a sutileza da dança. Em uma delas, um casal de bailarinos representa o amor como sentimento forte, explosivo, que beira a violência. Em muitos altos e baixos, trocam carinhos e agressões, mas os movimentos corporais seguem numa seqüência tão natural e orgânica, cíclica mesmo, que é possível compreender que para aqueles personagens assumidos por eles naquela coreografia, a proximidade entre sentimentos amorosos e violentos e mesmo a confusão entre eles é absolutamente comum e corriqueira.

Em outra cena, uma das bailarinas, sufocada, tenta se comunicar, se livrar de algo. Na impossibilidade da fala, ela vai tirando as roupas aos poucos. Logo, um bailarino a força a se vestir e a tira dali, sufocando-a com todo carinho. Desenham, então, a imagem da agonia que pode causar a pretensão de proteger alguém que não está “normal” – dentro da norma.

3 passos para fora do clichê

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