Hamlet S.A.

Críticas   |       |    8 de outubro de 2007    |    5 comentários

Uma esponjinha com água vai bem

Foto: Ezyê Moleda

Hamlet. O príncipe dinamarquês já despertou ensaios, livros inteiros, estudos e tudo mais o que tem de direito para a obra de Shakespeare, incluindo aí Entenda Hamlet em 15 minutos ou Hamlet para jovens. É uma referência. Não é de espantar então que – assim como grupos de teatro têm gosto pelas tragédias gregas de Sófocles, Ésquilo e Eurípides, como já atestou aqui nosso querido Maurício Alcântara nesta revista muito séria – um outro objeto de consumo das companhias ainda é a obra do inglês William Shakespeare, rivalizando no Brasil com as encenações de Nelson Rodrigues.

Posto isso, a gente, que vai muito ao teatro, fica reticente quando vê releituras destes grandes dramaturgos, pensando “qual vai ser a leitura dessa vez?”. E eu esperava algo desse tipo com uma peça chamada Hamlet S.A. Entretanto, pelo o que eu entendi do que a Cia. Estrela D’Alva mostrou neste espetáculo, o intuito era responder à pergunta “O quanto de Hamlet há em nós?”.
A montagem dirigida por Marcelo Gianini incomodava, pro bem ou pro mal. Tanto que, ao final, a platéia não aplaudiu – não fosse o meu primeiro aplauso – pois os atores não voltaram à cena. O incômodo é gerado principalmente pela segunda parte do espetáculo. Mas vamos à primeira. De início, os quatro atores lêem revistas icônicas, como Bravo!, Veja, Caras e o jornal local. Uma televisão ligada mostra o MIXTV ou o Polishop – não me lembro – mas é um desses programas em que o apresentador vende até a mãe.

A partir daí, os atores começam a divagar sobre questões da sociedade contemporânea através das notícias que lêem e vão desconstruindo a nossa tragédia humana desde o dia em que um maldito macaco se transformou em ser humano. A metralhadora acerta até Bin Laden, Bush e Mickey, referências fáceis e gastas do mundo capitalista e extremista em que vivemos, mas ao mesmo tempo uma pequena lembrança de que ainda estamos “sob domínio”. O tom é cômico e a platéia se delicia.

Os atores interpretam bufões. Tiram sarro uns dos outros, do público e de si mesmos. Ainda assim, alguns momentos tiram o ritmo da avacalhação, como um tapa mal dado ou um vídeo cujo áudio não ouvimos direito (reclamação geral da platéia, diga-se), mas o efeito é visível: quem assiste adora. O mise-én-scene aumenta quando o diretor do espetáculo, Sr. Gianini, sobe ao palco e anuncia que “o espetáculo já vai começar”. A partir daí, a bufonaria dá espaço para a encenação da tragédia. Não a de Shakespeare, mas a deste Hamlet de hoje, na dúvida do “ser-ou-não-ser-e-o-que-fazer-com-isso” tradicional e sua inter-relação com a mesquinharia e hipocrisia reinantes da sociedade contemporânea, da qual nós já havíamos sido contextualizados na primeira parte da peça.

Este pós-Hamlet (Ivan Ribeiro) já foi envenenado. É um espelho de governante misturado com essência de Papa, aroma de senador Calheiros e colegas de trabalho. Ele dialoga com o Fantasma (André Bubman) – que pode ser um fantasma qualquer de Hamlet, seja o de suas reminiscências, de seu pai, de seu tio Cláudio, de seu amigo Horácio ou de sua própria consciência. O Fantasma luta, em vão, para incutir o que quer que seja na cabeça do príncipe. Enquanto isso, Ofélia (Lígia Helena) corta seus pulsos e escreve nas paredes alvas com seu sangue: atormentada (sempre) com a infalibilidade de seu destino, de seu eterno retorno aos homens não-palpáveis (Nietzsche, sempre ele). Por último, sua mãe, a Rainha (Carolina Ferraresi) demonstra com muitos pronomes possessivos ter expelido do seu ventre o fruto de seu amor e ódio ambíguos.

O elenco apresenta um certo desnível, sendo as mulheres mais poderosas em suas sucintas interpretações do que os outros dois intérpretes masculinos em suas impostações e vícios . Além disso, o espetáculo padece de muita informação: os ruídos criados pelo excesso atrapalham o entendimento do espetáculo. Hamlet enfia alfinetes por seu corpo todo, há momentos de histeria “encenada” e coisas como pretensos vômitos (legal em seu intuito, confesso, mas não na execução) e máscaras dos já citados Bush e comparsas. Ainda há o cenário com muitos acessórios, que devem ser todos utilizados em cena, e o texto que tem elucubrações demais, fazendo com que a quantidade de palavras interfira no pensamento do espectador, ao invés de simplesmente cortarem bem gostoso o texto e dizerem o que é mais necessário, afinal, teatro também é condensação.
Soma-se a isso o problema de pressupor que a platéia já saiba da história de Hamlet, o que não é o caso aqui no Brasil (dependendo da classe econômica, claro). Ah, mais uma coisa: palavrões como “boceta” (a grafia é esta) devem ser utilizados com propriedade e não somente como artigo gratuito buscando chocar a platéia, que ainda por cima ri na presença deste tipo de vocabulário quando proferido sob nenhum contexto. A recomendação é: uma esponjinha com água já limparia toda essa sujeira e isso se faz premente para o espetáculo subsistir aos olhos do espectador.

Entretanto, há imagens belíssimas, como a Ofélia nua e a Rainha e seu magnífico manto vermelho-uterino (que não é tecnicolor), além da marcação de um corpo na parede, como quando policiais visitam a cena do crime e desenham o cadáver da vítima no chão. O cheiro da peça é de Heiner Müller e sua HamletMachine de oito páginas; aliás, muitas das falas são deste texto de Müller. Hamlet S.A. traz uma mistura interessante e deve-se prestar atenção a seu liquidificador. A impressão que fica é grande. É só dar uma limpadinha, que fica um brilho.


3 tapas bem dados, não se sabe se nos próprios atores ou em quem assiste


PS: Só na Bacante já temos três resenhas de montagens diferentes do mesmo texto. Veja aqui, aqui e aqui.

'5 comentários para “Hamlet S.A.”'
  1. Ronaldo Ventura disse:

    (É ético, justo, certo, ou qualquer coisa comentar uma crítica de um espetáculo que não vi? – Acho que não – MAs e daí? Não vou criticar a crítica e sim bater um papo… nesse caso, acho que é válido)

    Não assisti (ainda) esse espetáculo. Mas assisti quase tudo do Gianini. O cara é bom. Tem cara de ser diferente de tudo que vi dele, o que é legal, e pode até gerar coisa boa.

    Quero assistir.

    Atriz nua? hummmm
    Namorada de amigo meu? Hummmmm

    hauhauhauhauhauha

  2. Ivan disse:

    Adorei a crítica do meu espetáculo (Hamlet S.A.), Valmir. Apesar de todos os meus “vícios de interpretação” (rsrsrs), fiquei muito contente com o que vc escreveu e assino embaixo. Parabéns pela revista. Abração. Ivan Ribeiro.

  3. Carolina F. disse:

    Brigada pela crítica, elas serão muito bem anotadas e observadas!!!!
    parabéns pelo site, é lindo!!!!
    bjossssss

  4. Pezzolo disse:

    li, gostei. e olha que acho crítico teateal uma profissão meio besta ehehe
    jorge

  5. Juli =) disse:

    Ainda bem que no nosso caso tá bem mais pra diversão do que pra profissão! rsssssssssssss (Adoro o adjetivo besta! hehe)

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