Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga 2009 – Astier

Especial   |       |    10 de setembro de 2009    |    3 comentários

Cadernos de Guaramiranga

1

João Pessoa, idos de 2006. Minha pauta é com André Morais. Ele havia ganho a última edição competitiva do Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga. “Melhor ator e melhor espetáculo. A última vez que isso aconteceu foi com O bispo, de João Miguel”, ele fez questão de me lembrar.

Agora, o tempo corre, estou uns dois anos depois na sala da coordenação de Artes Cênicas da Fundação Espaço Cultural, falando sobre Guaramiranga com a atriz Fabíola Morais, do Bigorna. “Foi Guaramiranga quem consagrou João Miguel, quem fez as portas se abrirem para ele”.

Volto para o a conversa com André Morais. Eu estava esperando o carro chegar, já tinha terminado com as anotações, ele me conta. “Gente que nem falava comigo direito, agora diz, oi, André, vamos trabalhar”. Detalhe, minutos antes, na entrevista André me falou que segurou uma temporada no Ednaldo do Egypto do próprio bolso e que durante esse período praticamente pagou para se apresentar.

Escola Piollin, semana passada. Enquanto espero nas escadarias da escola, depois de assistir a peça Entre 4 Paredes, livre adaptação do Grupo Graxa ), escuto longamente Jorge Bweres, que fez a luz do espetáculo e que é parceiro de André nessa investida com Diário de um Louco. O mesmo espetáculo que ganhou Guaramiranga continua rodando pelo Palco Giratório. O sucesso do espetáculo fez com que tanto Jorge como André saíssem do Bigorna.

“Eu ganhei o Giratório agora. Eles não vão dar de novo pro Bigorna e isso ia prejudicar Fernando (Teixeira) que tá com um puta espetáculo, não seria justo”. Me disse Bweres quando eu liguei pra ele para fazer uma matéria sobre a formação do novo grupo, o Lavoura, com o qual iria circular pelo Palco Giratório.

Fabíola disse que eles continuavam parceiros.

Que eram amigos.

Que não tinha rolado briga.

Não, não rolou não. Mas eu me lembro, meses antes, do mesmo Fernando dizer que “existem dois Bigornas, o meu Bigorna (ele o fundou em 1968, com uma montagem do Navalha na Carne) e o de Bweres”.

2

Guaramiranga sempre foi uma espécie de território sagrado.

Nos tempos de mostra competitiva, vencer lá era como ultrapassar um rito de passagem.

Era como vencer o Shell.

Era como vencer o APCA.

Daí que eu entendo porque aqui na Paraíba, que ainda mantém um modelo competitivo de Mostra Estadual de Teatro e Dança, rolou uma espécie de orfandade – eu ouvi muxoxos de lado a outro – quando se anunciou a mudança do formato para mostras com convite.

3

Primeiro dia. Chego em um sábado.

Na Água me informam que eu não irei ficar no mosteiro, mas no hotel Logradouro.

Uns 20 minutos depois de trajeto descendo por curvas acidentadas e uma paisagem verde, chego em uma pousada ampla, com um lagozinho na entrada. Pergunto pelos demais. Cadê o Magela, cadê o Fabrício, cadê a Angélica?

Sinto alguma coisa ruir, mudar.

Aquilo que pra mim era a “cara” de Guaramiranga não estava, de jeito nenhum naquela pousada, bonita, mais confortável até, com quarto amplo, chuveiro com box.
Escrevo uma mensagem para Fabrício, sou informado de que ele pediu pra se transferir. Não tenho a mesma sorte, mas explico com todas as letras que é impossível cobrir o evento como eu quero estando tão distante de onde acontece tudo, no circuito Convento – Praça- Teatros, que dá pra ser feito a pé e que precisa ser feito dessa forma pois fica inviável locomover-se dependendo de vans.

Primeiro ato de desobediência civil. Fiquei clandestino lá no Mosteiro.

“Era pra dar mais conforto”, alguém me disse. Alguém da organização.

Pensei que uma primeira metáfora, a de tudo estar perto de tudo, estava começando a se quebrar.

No Logradouro ficaram os debatedores. Os convidados mais ilustres. Não consegui ficar lisongeado com o fato de ser relacionado entre eles. Não deu tempo, o meu pânico em perder a totalidade do evento me impediu de pensar nisso. “Tem tantos outros lugares, inclusive perto do mosteiro” , me diria João Denys em uma longa viagem ao aeroporto no meu já último dia, sugerindo forças invisíveis na estrutura de acomodar parte dos convidados no logradouro. Ele não aprofundou o assunto, só como disse Maurício uma vez, “levantou a lebre”.

“Você já viu o hotel que o perfeito construiu?”

Na mesma hora, volto ao Bar da Amy Winehouse em Guaramiranga e lembro de ter ouvido displincentemente a Bel, da Degagé, falar algo como a diária do hotel em frente. Se não foi a Bel foi o Álvaro, um cara caladão, que vai abrir uma editora e que pediu que eu cantasse Flávio José no primeiro dia de bebedeira.

“Eu não pagaria mil reais de diária, de jeito nenhum”.

Contam na mesa que o hotel foi feito para o prefeito receber os seus amigos. “Você sabia que o Festival de Teatro é o primo pobre dos festivais aqui?”.
Não Dênys, eu não sabia.
“O Festival de Jazz aqui é riquiíssimo uma estrutura milionária…”
Enquanto isso, todo de branco, suntuoso e inúltil para o Festival, o hotel era comtemplado por nós.

“Quer saber o que ocorre numa cidade? Vá ao cabeleireiro. Eu estive lá. Eles me contaram tudinho. Do hotel que o prefeito construiu”, explicou João Dênys. Ele me contou também que o Logradouro tinha sido usado outra vez, em 2004, na época que ainda era competitivo.

4

Segunda noite. No bar da Amy. Angélica toma um chocolate e dispara.

Como vocês ficaram sabendo de Guaramiranga?

A pergunta é pra mim e pra Fabrício.

Eu acho esquisito ter sido o olheiro da Globo, um sujeito super simpático que eu conheci em Curitiba anos atrás, quem tenha cantado a pedra pra Fabrício.

Eu? Guaramiranga sempre foi uma lenda lá na Paraíba. Como um arco do triunfo que conferia aos vencedores poderes áureos.

A voz de Dênis me vem agora. Perturbadora. “Havia anos em que pra diversificar, em nome da diversificação, o pessoal chamava para o júri gente de outra área. Uma vez veio um sociólogo e um cara de comunicação que não entendia nada dos jargões, não sabia nem o que era uma deixa. Esse cara aí, foi no ano que o Clowns de Shakespeare ganharam tudo. Esse cara tinha se deslumbrando com aquela menina lá. Como é o nome da atriz”.

Qual era o espetáculo, pergunto.

O Muito Barulho…Como é meu Deus, o nome da atriz, aquela bonitinha…”

Nara?

“Sim, ela mesma a Nara. Aí o cara da comunicação veio e disse: o prêmio de melhor atriz é dela. Eu disse, justifique por que. Me diga por que?”.

5

Terceiro dia, segunda, auditório do mosteiro. Debate sobre o espetáculo Mar Aberto, do Grupo de Atores a Deriva, de Natal. Eu sabia que ao contrário do que aconteceu no debate do dia anterior, em que a situação ficou fora de controle, os debatedores iriam estabelecer um formato. Mesmo a forma algo caótica desordenada não impediu de Nina Caetano, de Minas Gerais, fazer suas pontuações críticas no que se referia à contribuição do elenco do Alfenim no espetáculo Quebra-Quilos.

“Gente, eu vou ser bem didática aqui. Vou falar sobre os gêneros, dar uma classificação geral sobre o epíco, o lírico e o dramático (…) Por exemplo, o lírico é centrado no ‘eu’, na voz do poeta. Então, quando o poeta diz ‘as árvores choram sua ausência’, ele não está querendo dizer literalmente que as árvores choraram. É uma metáfora”.

Quem falou isso aí acima foi a carioca Rosyane Trotta. Foi ela quem mais se preocupou com a sistematização do debate. Com o ordenamento de quem falava. Essa introdução bem à lá “Telecurso Segundo Grau -Tecendo o Saber” ocorreu como tentativa de estabelecer um formato.

“Tu sabe que quem inventou a Rosyane Trotta foi o Yan Michalski, né?”

Não, eu não sabia.

“E eles não fizeram aquele livro Teatro e Estado?”

Agora estou no aeroporto. Por uma economia de idas de van, saio de Guaramiranga, na terça, às 13h30. Meu voo é às 21h07. O do Dênys é às 20 horas. Somos acomodados à agenda de voo de João Silvério Trevisan, que embarca às 16 horas e, como deve acontecer a qualquer convidado, não espera muito tempo no aeropoto.

“Miriam, cuidado, ele aqui vai botar tudo que a gente tá falando lá no site dele”.

Ganho a confiança de Dênnis. Em Guaramiranga, as notícias correm rápido. No dia em que fiz um questionamento à mesa debatedora, colocando justamente a minha preocupação em que um engessamento do formato poderia impedir uma maior interação, a notícia voou pelo vento. Da mesma forma como o “cacete” que tinha acontecido entre o Dênis e a Trotta.

Só que assim que entramos na van, perguntei

“Como foi o debate?”

Dênis só disse que tinha sido muito bom. Mas eu sabia que tinha sido mais do que isso. Usei a tática empreendida na época em que entrevistava técnicos de futebol. Para ter algo deles é preciso dar algo a eles antes. Resolvo ir ao alvo: Rosyanne Trotta.

Falei para Dênys que no debate com Márcio Marciano ela não falou praticamente nada. Mas que no dia seguinte, na hora do almoço, é bom ser invisível nestas horas, eu escutei ela conversando com Kil Abreu, fazendo uma série de apontamentos sobre o espetáculo.

Disse que primeiro, pensava que o Quebra Quilos era uma fábula escrita por um “João Guimarães Rosa da Paraíba. Nunca que eu ia advinhar que se tratava de um fato real”.

Ela fez pontuações críticas sobre como o grupo pensa Brecht. Apontou cenas. Verticalizou uma reflexão sobre vários pontos do espetáculo. Uma explanação digna de debatedora. Um contraditório que no mínimo instigaria um bom debate.
Só que ela fez tudo isso na mesa do restaurante…

Ela tinha sido paga – imagino eu que deve haver cachê pra debatedor – pra fazer essa reflexão “também” em outro lugar, no debate. Com o grupo. Com o público.

Nada contra os botequeiros. Ao contrário. Reverberar o festival em mesa de bar é uma das magias de Guaramiranga com sua Ilha de Caras, seu boteco do Odilons e com cervejas e mais cervejas embaladas por frio e reflexão e brincadeiras.

6

Ambiguidade, teu nome é Guaramiranga.

Sou amigo de Magela há uns 4 anos. Nos conhecemos em Recife, no festival de lá.

Magela é editor do caderno de Cultura de O Povo.

É também curador do Festival de Teatro de Guaramiranga.

A história do debate de almoço de Trotta correu. Havia uma treta da organização com ela, não me lembro qual. Combinamos escrever algo pra Bacante, ainda no calor da hora. O texto poderia servir de fonte pra matéria de Angélica.

O tempo passou. As coisas foram esfriando. Fabrício ponderou sobre relatar o episódio. Dia seguinte, imaginei que publicar sobre isso ainda no Festival era meio que agir como se fôssemos polícia do Festival.
A ambiguidade estava se entrelançado demais.

Resolvemos não tocar nesse ponto. Magela – que não fez a curadoria dos debatedores – diz
“Quero até ver como é que ela vai se sair com João Denys que sabe tudo de teatro”.

“Eles fazem a coisa meio desarticulada. Um faz a curadoria dos espetáculos, outro dos debatedores. Sabe por que eu digo isso? Por que esse ano me chamaram pra ser debatedor. Eu disse: minha filha, eu não posso, estou com espetáculo na mostra”, conta Dênys ainda na van.

Debate sobre Encruzilhada Hamlet.

É meu último dia. Me imagino às três e pouco da tarde comprando suvenirs, como canecas com o nome “Festival de Teatro de Guaramiranga”. Tenho que bater três textos para a redação.

“Você teve uma postura quixotesca, Astier. No mínimo você fez eles pensarem na forma do debate”, me disse Fabrício que não queria perder o debate do João Denys por nada, mas que teve que voltar antes pra São Paulo.

Faltando uma matéria, falo pro meu editor que preciso almoçar. Escapo e vejo um trecho do debate. Tudo pacífico, tranquilo.

Volto pra central. Minutos depois, sou informado de que lá rolou o maior pau, que a Rosyane Trotta tinha quebrado maior pau ao ponto de se retirar do debate.

“Há 20 anos, numa apresentação lá no Rio de uma montagem minha do Balcão, do Genet. A Rosyane não estava nem na mesa do debate. A mesa foi montada quase como um júri. Os artistas ficaram embaixo. De uma hora pra outra ela, atravessou o palco, pegou o microfone e gritou que não tinha entendido nada!”

20 anos depois, Guaramiranga.

“Rosyane, você não entendeu nada do Encruzilhada, como há 20 anos você disse a mesma coisa do Balcão, do Genet”.

Quando a plateia pode falar, um homem, me conta Dênys, identifica-se como advogado. Não é de teatro, explica desde o princípio, mas é um admirador confesso de Shakespeare. Fala que entendeu tudo. Dênys me conta que ele cita o ensaio do Victor Hugo sobre o coveiro, que entendeu as referências, que…

“Aí eu fiquei envaidecido e disse. Pronto, só por isso o debate foi salvo”.

Falei pra Denys que era muito fabuloso que um sujeito que não era de nenhum grupo de teatro tenha acordado cedo, saído de casa e ido ao debate para colocar seu ponto de vista.

“Exatamente. Você entendeu o que eu quis dizer com salvar não é? Mas o pessoal lá, os debatedores não entenderam. Achavam que eu estava desmerecendo o trabalho deles”.

7

Festival de Curitiba, 2009.

Estamos nos últimos dias. A saudade de encontrar amigos que só vemos uma vez por ano já começa a bater fundo. Eu, Rodolfo Lima e Magela falamos sobre Guaramiranga.

O papo descamba sobre como o Festival não sai do Nordeste, não vai além dele.

As palavras se embaçam na memória, mas o sentido é este. De que Guaramiranga possa ser essa vitrine do Nordeste para o resto do país.

Talvez, do mesmo modo como Curitiba vem a ser vitrine para o Brasil.

O grifo aí é meu.

E o medo também.

'3 comentários para “Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga 2009 – Astier”'
  1. Magela Lima disse:

    Não tenha medo, meu querido. É preciso coragem. Li atentamente e carinhosamente todas as linhas. Muitas, aliás. Entre idas e vindas de um tempo que corre e se mistura, acredito que você entendeu a chave para pensar corretamente sobre o Festival de Teatro de Guaramiranga. Ao contrário dos demais eventos que a cidade recebe, ancorados numa perspectiva de desenvolvimento turístico/econômico, a mostra de teatro é uma vocação cultural daquele povo. Para uma cidade de 4 mil habitantes, é de impressionar o público que se reúne ali para assistir teatro. Claro, isso não isenta Guaramiranga. São muitas as limitações, inclusive, financeiras. Além disso, o festival tem procurando se aformatar. É recente essa ruptura com o caráter competitivo. Desde então, porém, há um esforço desmido para imprimir um conceito à programação. Ano passado, de forma improvisada, a ideia de grupo foi explorada. Em 2009, a dramaturgia assumiu a dianteira. O que eu quero dizer é que Guaramiranga ainda parece ensaiar sua cena atual. Isso vale até para o meu exercício de curadoria. De todo modo, minha certeza é uma só: ano que vem, estaremos todos lá, com novos questionamentos e novas alegrias!!!

  2. Angelica Feitosa disse:

    Relato sincero e honesto, meu amigo! Pena você não ter permanecido todos os dias para disparar o seu olhar pelo restante do Festival. Tivemos uma entrevista final com os debatedores, eu e o Fábio (do Diário), que foi esclarecedora para muitas das questões, principalmente em relação à abertura do grupo para ouvi-los e o papel dessas tres pessoas no encontro. A gente conversa.

  3. astier basílio disse:

    a gente conversa sim, Angélica.
    Queria mesmo muito ter ficado até o final, vc não tem ideia.

    Magela, como diria Tom Zé, cada homem faz sozinho a casa da humanidade.
    Beijo

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